Every Poem you write here
You will never understand,
Because when the waves arrive,
They will allways go off the end!

26.5.06

Planejamento Suburbano ou Mitologia Estrutural

Brasília e Roma podem ser consideradas “Cidades Irmãs” – conceito criado pela Unesco para designar cidades de mesma gênese - por que ambas nasceram de um projeto: antes de sua construção, estas cidades foram sonhadas, concebidas e desenhadas. Pode-se dizer mais, elas ensejavam um projeto político.

Olavo Thadeu Fermoseli Câmara

As razões da construção de Brasília são de nós bastante conhecidas e não devem, por isso, deixar de ser discutidas. A irmã mais velha de Brasília vivia seu esplendor e, já naquela época, padecia das conseqüências de ser a capital do Império dos Césares. Suas vias eram estreitas e não comportavam o intenso tráfego de veículos, a ponto de suscitar o legiferante poder romano a criar o que passou a ser conhecido como a primeira lei de trânsito. Referindo-se aos veículos como “auto móveis”, dizia que aqueles veículos auto móveis que se encontrassem em determinada área central de Roma, quando do nascer do sol, deveriam permanecer parados, até o por do sol. Uma forma romana de dizer “Trânsito proibido a veículos durante o dia”.

O espaço de Roma não era disputado apenas pelos auto móveis. Um excedente populacional sobrecarregava a Urbe, trazendo transtornos e desconfortos aos cidadãos urbanos. Roma, graças aos atrativos de sua centralidade, era alvo da migração das populações do campo. Parte dessa população, que não tinha condições para moradia na Urbe, passou a ocupar as catacumbas romanas – uma verdadeira cidade foi “construída” embaixo de Roma.

A Urbe e a sub Urbe. Assim, cidadão urbano era o morador da Urbe – e o não-cidadão era suburbano – morador da sub Urbe.

E o que eram as Catacumbas Romanas?

Área correspondente ao subsolo imediato de Roma, destinada a depósito dos restos mortais dos cidadãos e um verdadeiro labirinto de cloacas e canais para escoamento dos resíduos sanitários gerados pela Urbe. Todo esgoto de Roma transitava por galerias e canais subterrâneos totalmente desprovidos de iluminação, insolação e ventilação, em cujas paredes laterais se instalavam os nichos para deposição de cadáveres – as carneiras.

A decomposição de corpos humanos em presença de esgoto, circulando em um meio sem iluminação, insolação e ventilação, transformava as Catacumbas Romanas em foco epidêmico de proporções desastrosas – a eclosão de uma epidemia, em pouco tempo, se transformaria em uma pandemia, levando o risco fatal a todos cidadãos urbanos, incluídos aí a elite romana e o próprio César com sua corte.

Esta razão, com certeza, levava César a destacar parte de sua guarda – os Pretorianos – a manter sob vigilância controlada a ocupação das Catacumbas. Tarefa que poderia ser comparada ao castigo imposto por Zeus a Sísifo ou ao Tear de Penélope, pois, ao mesmo tempo em que não eram produtivos os resultados do esforço, o que se fazia durante o dia era desfeito a noite. Populações removidas hoje daqui, amanhã estavam instaladas acolá.

Mantendo o enfoque, com auxílio da mitologia greco-romana, Cronus continuava a comer os filhos que gerava...A mitologia foi criada pelo homem para explicar e justificar o inexplicável e o injustificável. Com o passar do tempo, problemas não resolvidos, quando não tratados, geram mais problemas, aumentando seu potencial de impacto devastador. Isto é uma patologia típica das cidades.

O desfecho da antiga Roma é nosso bem conhecido e também merece ser discutido. Aquela visão caricata de um Nero tocando lira, após atear fogo a Roma, tão presente nos filmes de nossa infância, reapresentados nas sessões da tarde das emissoras de segunda linha, e refeitos, nos dias de hoje, pelos laboratórios cinematográficos de última geração, pode não corresponder à realidade dos fatos ocorridos. Há que se considerar que o preceptor de Nero foi ninguém menos que o filósofo Sêneca, cujas preocupações com a vida e com a morte se revelam em sua obra Sobre a Brevidade da Vida, que pode ser sintetizada por este trecho capitular:

“Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer.”

À parte das deformações morais que se nos chegam de César Nero, pode-se dimensionar a magnitude de sua inteligência e habilidades, considerando a educação recebida de Sêneca e sua sobrevivência em meio ao verdadeiro Circo Romano que era aquele império. Ciente da perspectiva fatal de uma pandemia com foco nas catacumbas, Nero concebeu o incêndio daquelas instalações como medida sanitária, eliminando o meio propício às bactérias e dificultando a permanência humana.

O acúmulo de gases residuais de decomposição orgânica, combustíveis por excelência, e a abundância de madeira nas estruturas das construções das catacumbas da Urbe Romana, pode ter escapado ao controle de Nero, face às proporções assumidas pelo sinistro, que se iniciou na sub Urbe e terminou por atingir a Urbe.

Pode-se imaginar um arauto de César, em um comício, ainda no rescaldo do incêndio de Roma, anunciando a contratação de arquitetos para desenhar a Nova Roma e as perspectivas de geração de emprego advindas da construção. Não cabe agora falar da falência do erário romano e da impossibilidade de remunerar os construtores da Nova Roma, o édito de César convocava os cidadãos romanos a construir a Nova Roma por honra, glória e prazer. O que se entende hoje por trabalho era expresso pela palavra labor; e tripalium (origem da palavra trabalho) eram três paus amarrados por um fio, constituindo-se em instrumento de castigo. Aqueles que se recusassem a construir a Nova Roma por honra, glória e prazer eram submetidos ao tripalium. Daí o dito popular “O trabalho (tripalium) dignifica e enobrece o homem.” e a verdadeira aversão atávica que o ser humano desenvolveu pelo trabalho – principalmente quando ele não enseja prazer, honra e glória.

Quase dois mil anos separam Brasília daquela Nova Roma, as variações semânticas nos afastam da sub Urbe e subúrbio, ou suburbano, assumiu conotação de periferia ou depreciação de classe. A tecnologia do Planejamento Urbano se serve do Geoprocessamento e outras novidades. Apesar disso, algumas circunstâncias insistem em manter ligadas as duas irmãs em seus destinos de capital do Império dos Césares.

À centralidade de Brasília se aliam políticas de distribuição de lotes e, como não temos aqui as catacumbas romanas, “permitimos” que os não-cidadãos – os suburbanos, desprovidos de cidadania – sejam assentados sobre uma área de deposição de lixo com mais de trinta anos de saturação. A Cidade Estrutural é um assentamento “espontâneo”(??) ou irregular que assim ficou conhecida por se localizar às margens da Via Estrutural - que liga o Plano Piloto às regiões mais densamente habitadas do Distrito Federal (Taguatinga, Ceilândia, Samambaia e Brazlândia). Inicialmente, compunha-se de menos de uma dezena de famílias, que sobreviviam da catação de lixo na área conhecida como Lixão. Literalmente, da noite para o dia, converteu-se em uma “cidade”, com arruamento, lotes, áreas para templos, escolas e serviços – áreas demarcadas e “distribuídas”.

O esgoto corre a céu aberto e os barracos de madeira se intrincam, praticamente, apoiando-se uns sobre os outros, em um tecido de alta vulnerabilidade a incêndios sem a menor possibilidade de controle. Geograficamente, a área contígua ao Lixão limita-se com o Parque Nacional, sítio dos mananciais que abastecem Brasília, e é cortada por um poliduto da Petrobrás, onde são transportados derivados de petróleo. Pode-se imaginar o que seja um incêndio atingindo um poliduto!

Enquanto César Nero não age, Cronus é implacável. E, sobre o Lixão da Estrutural, crianças brincam no esgoto, respirando os gases gerados pela decomposição dos resíduos ali depositados, ao longo de anos, sem qualquer controle sanitário. Assim uma população suburbana se instala e cresce sob um verdadeiro foco epidêmico, com características e conseqüências não muito diferentes daquelas das catacumbas romanas. Acrescente-se que essa população é prestadora de serviço em Brasília e região.

O faxineiro, o cozinheiro e seus auxiliares, para não falar de outros trabalhadores, sub e desempregados – moradores desse assentamento - prestam serviço em residências, blocos, restaurantes, hotéis, hospitais, em Ministérios... Quem sabe, no Aeroporto ou no Congresso Nacional?.... Estes são pontos de alta confluência e trânsito de indivíduos de todo Brasil e, por que não dizer, do mundo – Brasília tem o maior Corpo Diplomático acreditado em uma só localidade.

Estamos diante da fixação de uma população com alto potencial para dinamizar um processo endêmico e pandêmico de proporções nunca vistas; para não falar de um incêndio que começa na sub Urbe e atinge a Urbe.

Alguém poderá dizer tratar-se apenas do roteiro de um filme, enfocando grandes catástrofes sobre uma cidade. Tudo bem! Ocorre que a realidade, ultimamente, vem teimando em imitar os filmes e a vulnerabilidade das cidades está à prova.

Ave César!

Olavo Thadeu Fermoseli Câmara é Professor e Arquiteto.Especialista em Planejamento Habitacional e Desenho Urbano, com Aperfeiçoamento Profissional em Planejamento Urbano Regional na Alemanha - Área de Concentração: Planejamento e Construção de Moradias e Centros Residenciais de Baixo Custo.

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